Autarquia virou laboratório para implementação infralegal de modelos de trabalho por metas e produtividade previstos na reforma Administrativa
Ao menos 11 servidores do Instituto Nacional de Serviço Social (INSS) morreram nos últimos dois meses vítimas da intensificação do trabalho, do aumento do assédio institucional, da política de metas que acabaram com a jornada de trabalho e outras medidas neoliberais que vêm sendo implementadas na autarquia. A denúncia foi apresentada pela diretoria da Federação Nacional dos Sindicato de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social durante Seminário realizado em agosto sobre a reforma Administrativa.
De acordo com Cristiano Machado, diretor da Fenasps, a implementação de medidas infralegais, que já precarizaram sobremaneira as condições de trabalho e adoecimento de trabalhadoras e trabalhadores do serviço público além de piorar o atendimento à população usuária, tem levado ao adoecimento expressivo da categoria. Trabalhadoras e trabalhadores do INSS foram incluídos no Programa de Gestão e Desempenho (PGD), instituído pelo Decreto nº 11.072/2022 e regulamentado pela Instrução Normativa 24/2023, trabalha em teletrabalho, por metas de produtividade, e não tem mais jornada.
“No INSS, tudo que existia de pior na IN 24 foi implementado. O servidor tem que assinar plano de trabalho com metas em vez de jornada e quem não quisesse assinar poderia ser levado à corregedoria por insubordinação. Quem não cumprisse a meta poderia ser demitido por inadimplência ou ter salário reduzido proporcionalmente. A angústia para bater meta gerou um quadro de adoecimento da categoria”, contou o secretário de Imprensa e Divulgação da Fenasps.
Segundo Machado, nos últimos 2 meses, foram registradas nove mortes súbitas e dois suicídios de trabalhadores, na faixa etária de 35 a 50 anos, que para a Fenasps estão diretamente ligadas à implementação das metas de produtividade e outras medidas infralegais, que resultaram no aumento do adoecimento da categoria.
Viviane Peres, da Secretaria Formação Política e Sindical da Fenasps, corrobora a denúncia apresentada por seu colega. Ela ressalta que, nos últimos anos, o INSS passou por grandes alterações nos processos de trabalho. “Especialmente, a partir de 2017, quando começa o processo de digitalização, também inicia ali o processo de novas modalidades de trabalho dentro do teletrabalho, modalidades que não têm mais jornada de trabalho, na qual o servidor e a servidora trabalham por metas. Isso vem sendo aprofundado desde então, as cobranças por metas de produtividade, por quantidade de atendimentos”, explica.
Conforme a diretora da Fenasps, na sequência veio a pandemia, que foi um agravante para toda a população com relação a adoecimentos, tanto físicos como mentais. No entanto, Viviane acrescentou que nesse período o INSS intensificou a cobrança de metas, a pressão por assinatura de pactos individuais. “Isso já começou na pandemia, servidores foram pressionados a assinar um pacto de produtividade. Mesmo estando na pandemia, o INSS cobrou isso e a situação só vem se aprofundando cada vez mais”, criticou.
Para entender a quantidade elevada de denúncias que os sindicatos de base estavam recebendo, de situações de assédio e adoecimentos, entre dezembro de 2021 e agosto de 2022, a Fenasps realizou a pesquisa “A assim chamada modernização do INSS: a arcaização do trabalho e os rebatimentos na saúde dos(as) servidores(as) do instituto”. “Fizemos esse levantamento junto à categoria e na pesquisa já tem alguns indicativos de, inclusive, ideação suicida e um índice de adoecimento imenso do conjunto dos servidores. Na pesquisa, o relato dos servidores fala da pressão por metas, de não ter limite de jornada, servidores que estão trabalhando até 12 horas por dia para cumprir essas metas”, conta Viviane.
De acordo com a pesquisa, 47% dos entrevistados e das entrevistadas exerciam jornadas de 8 a 10 horas diárias, sendo que 7% trabalhavam acima de 10 horas diárias. 30% também disseram trabalhar aos finais de semana. Quando questionados sobre as metas de produtividade, 71% consideraram que não eram adequadas, e 91% avaliaram que o trabalho aferido por metas individuais de produtividade prejudica o atendimento à população.
O levantamento mostrou ainda que “a política implementada de transformação digital, que alterou profundamente os processos, gestão e controle de trabalho, bem como a falta de uma política de prevenção e proteção ao trabalho, impactou na ampliação significativa do índice de adoecimento dos(as) trabalhadores(as) do instituto”. De acordo com a pesquisa, em 2019, cerca de 65% de servidores e servidoras tiveram algum afastamento do trabalho por motivo de adoecimento, um aumento de 25,40% em relação a 2016.
No mesmo ano de 2019, apontou o estudo, ocorreu a transformação digital, com a incorporação da plataforma MEU INSS, que eliminou a maioria dos atendimentos que eram acessados de forma presencial. Também naquele ano, foram inseridas “novas” modalidades de trabalho no INSS: teletrabalho e trabalho semipresencial. Ainda, foi instituído o Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios (BMOB1), pela Lei nº 13.846/2019, o um bônus de produtividade para aquele trabalhador ou trabalhadora que concluir análise de benefícios após jornada de trabalho ou após o cumprimento de metas. O bônus representou um incentivo salarial, com o objetivo de reduzir as “filas” do INSS. Contudo, em contrapartida, ampliou a jornada de trabalho e intensificou o processo de trabalho dos servidores e das servidoras do INSS.
A Fenasps ressaltou ainda que outras alterações foram realizadas, dentre elas, a criação de Centrais Especializadas, que centralizaram uma “fila virtual” de requerimento. Segundo a federação, apesar da nomenclatura “especializada”, na prática a tendência foi de generalização do trabalho, impondo a realização de análise dos diversos benefícios e serviços, muitas vezes sem a capacitação adequada.
O levantamento denunciou também que, com o teletrabalho e a regulamentação do bônus por trabalho excedente, o instituto passou a organizar metas individuais de produtividade. Para tanto, foram editadas portarias que regulamentaram “pactos” individuais de produtividade, regulamentando, assim, a extinção da jornada de trabalho, uma vez que o trabalho passou a ser mensurado por metas individuais, não mais por tempo de trabalho.
“Destaca-se que todas essas alterações foram realizadas pela gestão do INSS de forma unilateral e sem debate com as entidades sindicais representativas dos(as) servidores(as). Essas drásticas mudanças foram associadas à utilização de métodos privados para o controle do trabalho, que estão nitidamente explicitados no “Relatório de Gestão de 2020 do INSS”, que versa sobre o planejamento da autarquia até ano de 2023, tendo como premissas: INSS superavitário, englobar estratégias de arrecadação de receitas próprias; modelo de negócio e estrutura organizacional; regra de negócios e automatização da análise; reestruturação organizacional voltada à transformação digital; ampliação de programas de gestão, com jornadas de trabalho por produtividade, dentre outros”, detalhou o texto da pesquisa.
Viviane Peres afirma que a situação retratada na pesquisa piou ainda mais. Entre 2023 e 2024, o Ministério de Gestão e Inovação em Serviço Público (MGI) editou três instruções normativas - 24/2023, 52/2023 e 21/2023 -, que estabelecem orientações para os órgãos públicos federais organizarem seus programas de gestão de desempenho. “No INSS, foi publicada, em dezembro de 2024, a portaria 1.800, que pegou do conjunto dessas instruções o que tinha de pior com relação à cobrança de metas, com a extinção total de jornadas de trabalho para todos os trabalhadores do INSS”, diz.
“Todos agora têm que atuar por metas de produtividade ou algum produto de trabalho diário, que está muito vinculado ao número de atendimentos. E isso tem, na verdade, precarizado imensamente as condições de trabalho e ampliado a jornada de trabalho. E, nesse ano, a gente começa a identificar esse número imenso, um quantitativo relevante de servidores falecendo, muitos deles em idade relativamente jovem, tendo doenças cardiovasculares, ataques cardíacos fulminantes, acidente vascular cerebral. Alguns servidores, que a gente teve conhecimento, não foram a óbito, mas ficaram com limitações imensas, a partir, por exemplo, de um AVC, servidores com menos de 50 anos. Não temos uma pesquisa que faça totalmente essa relação com o trabalho, mas temos dados que informam um número cada vez mais grave de servidores adoecendo”, lamenta.
Segundo a diretora da Fenasps, não é um acaso que o número de trabalhadoras e trabalhadores com problemas de saúde aumentou especialmente nos últimos anos, com a implementação da lógica de metas de produtividade. “Não é uma coincidência que os servidores vêm adoecendo. Muitos deles também em situação de adoecimento mental. O próprio INSS soltou um indicador de que 70% dos servidores tomam algum tipo de medicação controlada. Na nossa opinião, está totalmente relacionado às condições de trabalho, porque os próprios servidores relatam essas precárias condições, que têm uma tendência a se agravar ainda mais”, acrescenta.
A dirigente afirma que o governo federal não coloca essas questões em discussão nas mesas de negociação. Lembra, ainda, que, historicamente, a Fenasps defende a necessidade de uma jornada de 30 horas. Segundo Viviane, as metas sempre existiram no INSS, especialmente depois da década de 90. No entanto, a forma com que a gestão do instituto foi conduzida, a lógica foi se aprofundando até chegar ao quadro de hoje, em que não existe mais jornada de trabalho.
“Foi extinta a jornada de trabalho no INSS. Isso é muito grave, considerando que é uma política pública fundamental para o conjunto da classe trabalhadora. Além de precarizar as condições de trabalho dos servidores e das servidoras, o INSS tem criado imensas barreiras para o acesso da população aos serviços da autarquia, com a lógica das plataformas digitais e tudo mais. E, com certeza, precarizar o trabalho dos servidores vai precarizar o atendimento, vai precarizar a análise dos benefícios. Isso impacta também na qualidade”, observa.
Acesse aqui a pesquisa “A assim chamada modernização do INSS: a arcaização do trabalho e os rebatimentos na saúde dos(as) servidores(as) do instituto”
*Com informações da Fenasps